terça-feira, 27 de setembro de 2011

LIMINAR QUE IMPEDIA FISCALIZAÇÃO DA VIGILÂNCIA SANITÁRIA NO GRUPO INFIBRA DE LEME FOI CASSADA: MAIS UMA DERROTA DO LOBBY DO AMIANTO


PODER JUDICIÁRIO



JUSTIÇA DO TRABALHO



TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO



Vara do Trabalho de Leme/SP



Processo nº 180600-48.2009.5.15.0134 RTOrd



Litigantes: INFIBRA S.A., requerente, SAMA S.A.



MINERAÇÕES ASSOCIADAS, assistente litisconsorcial, e MUNICÍPIO DE



LEME, requerido.



Submetido o processo a julgamento, foi proferida a seguinte



SENTENÇA:

Pedidos às fls. 21/23.

Deferida liminar às fls. 474/480 para que a requerente pudesse continuar produzindo, até o julgamento do feito, artefatos contendo amianto crisotila.



Inclusão de assistente litisconsorcial no pólo ativo às fl. 502.



Apresentada defesa às fls. 747 e seguintes, com manifestação sobre documentos às fls. 759/760.



Em audiência, dada a desnecessidade de produção de provas, foi encerrada a instrução processual, fl. 744.



Impugnação à contestação às fls. 762/771, pela requerente, e às fls. 772/783, pela assistente.



Manifestação do Ministério Público do Trabalho às fls. 787/808.



Inconciliados.



É o relatório.



D E C I D O:



PRELIMINARMENTE:



DA COMPETÊNCIA MATERIAL:

O requerido pugna pelo reconhecimento da incompetência absoluta do Juízo, uma vez que a ação visa a anular auto de infração lavrado pela vigilância sanitária do Município de Leme, no exercício de suas atribuições de proteção à saúde. Dessa feita, entende que o órgão competente para apreciar a ação anulatória seria o Juízo Cível.



Razão não lhe assiste. A EC 45/2004 acresceu ao art. 114 da Constituição Federal o inciso VII, conferindo a esta Especializada a competência para julgar ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização do trabalho.



Na hipótese, a penalidade de interdição foi aplicada pela vigilância sanitária com o escopo de proteger a saúde de todos os munícipes, mas especialmente os trabalhadores da autora, tendo havido, inclusive, participação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho na liberação parcial e temporária das atividades, conforme documento de fl. 26. Ademais, a requerente questiona a legitimidade do órgão

municipal para a fiscalização do ambiente de trabalho, em face do art. 21, XXIV da CF e da atribuição conferida pelo art. 161 da CLT ao superintendente regional do trabalho, restando evidente a competência deste juízo para dirimir a controvérsia.



DO MÉRITO:

A vigilância sanitária do Município de Leme, através do auto de imposição de penalidade nº 267, série AD (fl. 25), interditou parcialmente o estabelecimento da requerente, a fim de suspender o processo de fabricação de produtos que contenham amianto, com fulcro na Lei Estadual 12.864/2007. A autora alega a nulidade da penalidade administrativa imposta, tendo em vista que órgão municipal teria invadido competência do Ministério do Trabalho e Emprego.

O requerido impugna tal assertiva, sob a alegação de que a vigilância sanitária se inclui no campo de atuação do Sistema Único de Saúde, que detém poder de polícia sobre a fabricação de produtos nocivos à saúde.



Pois bem. A Constituição Federal de 1988 arrolou como direito dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (art. 7º, XXII), enfatizando, em outros dispositivos que se harmonizam organicamente, a seguridade social como um "conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde..." (art. 194, caput), estabelecendo a saúde como "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos..." (art. 196) e qualificando como de "relevância pública as ações e serviços de saúde..." (art. 197).



Nesse sentido, a Carta Magna atribuiu ao Sistema Único de Saúde a competência para "

executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica , bem como as de saúde do trabalhador" (art. 200, II) e “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” (art. 200, VIII).



Data maxima venia ao juiz prolator da decisão em sede de liminar, entendo que a vigilância sanitária municipal tem, sim, competência para fiscalizar o ambiente de trabalho e as atividades que impliquem danos à saúde do trabalhador, porque sua atuação é respaldada, como visto, em nível constitucional (art. 200). Ao estabelecer a competência exclusiva da União para organizar, manter e executar a inspeção do trabalho, o art. 21, XXIV da CF não excluiu a competência comum de Estados e Municípios no cuidado à saúde (art. 23, II) e na proteção ao meio ambiente (art. 23, VI).



Com efeito, a competência exclusiva quanto à inspeção do trabalho é materializada na atuação do Ministério do Trabalho e Emprego e de seus órgãos regionais, aos quais incumbem as ações administrativas para assegurar a observância das leis trabalhistas. Nesse sentido, o Município jamais poderia, p. ex., fiscalizar a regularidade de terceirização de mão de obra ou aplicar penalidade administrativa pela não anotação de CTPS.



Por outro lado, sendo a saúde dever do Estado, a ser zelado por todos os entes federativos, não pode prevalecer interpretação que restrinja a atuação do Município, na defesa desses interesses, a determinado setor da sociedade. Seria flagrantemente inconstitucional asseverar que o Município deve zelar pela qualidade de todo o meio ambiente, exceto o do trabalho, ou proteger a saúde de todos os cidadãos, exceto os trabalhadores. Em verdade, a fiscalização das condições sanitárias do ambiente de trabalho, expressamente prevista no art. 200 da CF como atribuição do Sistema Único de Saúde, reforça a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego, de modo a formar um sistema de ampla proteção à saúde do trabalhador.



Na linha traçada pelo constituinte, a Lei Federal nº 8.080/1990, regulamentando a atuação do Sistema Único de Saúde, assim dispõe:



“Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):



I - a execução de ações:



a) de vigilância sanitária;



(…)



c) de saúde do trabalhador ;



(…)



§ 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde (…).



(...)



§ 3º Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho”.



A vigilância sanitária, portanto, comporta ações para eliminar os riscos à saúde decorrentes da produção e circulação de bens, exatamente a hipótese sob exame.



Especificamente no que tange à competência da vigilância sanitária municipal, dispõe o Código Sanitário do Estado de São Paulo (Lei Estadual 10.083/1998), no exercício da competência concorrente para legislar sobre defesa da saúde (art. 24, XII, CF):



“Artigo 92 - Os profissionais das equipes de Vigilância Sanitária e Epidemiológica, investidos das suas funções fiscalizadoras, serão competentes para fazer cumprir as leis e regulamentos sanitários, expedindo termos, autos de infração e de imposição de penalidades, referentes à prevenção e controle de tudo quanto possa comprometer a saúde.



(…)



Artigo 112º - As infrações sanitárias, sem prejuízo das sanções de natureza civil ou penal cabíveis, serão punidas, alternativa ou cumulativamente, com penalidades de:



(…)



VIII - suspensão de fabricação de produto;



IX - interdição parcial ou total do estabelecimento, seções, dependências e veículos;”



Dessa feita, conclui-se que a vigilância sanitária do Município de Leme agiu com amparo na lei, sendo-lhe permitida a interdição do estabelecimento, não prosperando a alegação da autora no sentido de que tal penalidade somente poderia ser aplicada pelo Ministério do Trabalho.



Remanesce a questão, todavia, quanto ao fundamento utilizado para a autuação. Conforme se observa do auto de fl. 25, o órgão municipal interditou o estabelecimento da autora por descumprimento da Lei Estadual nº 12.684/2007, que proibiu o uso de quaisquer tipos de amianto no Estado de São Paulo, inclusive o asbesto branco (crisotila), utilizado pela requerente na fabricação de fibrocimento.



Ocorre que a Lei Federal nº 9.055/1995 vedou, em todo o território nacional, a extração, produção, industrialização, utilização e comercialização de vários tipos de amianto,

exceto o crisotila, como expressamente consignado em seu art. 2º. Daí porque a autora afirma a inconstitucionalidade da lei estadual que fundamentou a autuação, por invadir a competência legislativa da União para editar normas gerais na matéria.



Tal controvérsia é atualmente objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade (nº 3937), ainda não julgada em caráter definitivo. O Supremo Tribunal Federal, todavia, apreciou medida cautelar que visava à suspensão dos efeitos da lei estadual, e, por maioria, negou referendo à liminar concedida pelo relator, de modo a preservar a eficácia da lei regional. Viável, portanto, o controle difuso de constitucionalidade.



Pois bem. A proibição do uso de amianto na fabricação de produtos, embora motivada por razões sanitárias, implica restrições à atividade comercial, o que é competência privativa da União, nos termos do art. 22, VIII da CF.



Nesse sentido, o Estado detém competência supletiva, exercitável somente quando inexistir lei federal regulando a matéria.



De início, portanto, poder-se-ia concluir pela inconstitucionalidade da Lei nº 12.684/2007. Contudo, uma análise sistemática do ordenamento revela, em verdade, que é a Lei Federal nº 9.055/1995 que padece de inconstitucionalidade, e, por consequência, sua inaplicabilidade torna legítimo o exercício da competência supletiva pelo legislador estadual.



Vejamos. O art. 196 da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que erige a saúde como um direito de todos, a impõe como dever do Estado, de forma que o legislador deve pautar sua atuação pela proteção a este direito.



No caso específico do amianto, os estudos médicos sugerem que não há níveis seguros para sua utilização, não obstante o parâmetro colocado no Anexo 12 da NR-15 do Ministério do Trabalho. Peço vênia para transcrever o voto do eminente Ministro Joaquim Barbosa, proferido no julgamento da medida cautelar na ADI nº 3937/SP, e apoiado na tese de René Mendes, da Universidade Federal de Minas Gerais:


“Há três doenças relacionadas ao uso do amianto: asbestose (causada pela reação do tecido à deposição de poeira no interior do pulmão), câncer de pulmão, e mesotelioma (tumores formados do tecido serodo que reveste órgãos como pulmão, coração e abdômen). Outras também têm sido associadas à exposição ao amianto (câncer de laringe, câncer de orofaringe, câncer de estômago, câncer de colo-retal e câncer de rim) (Mendes, p. 9-10).

A relação entre essas doenças e o amianto já foi detectada pela literatura médica brasileira. No caso da asbestose, esses efeitos teriam sido registrados há pelo menos 50 anos. No caso do mesotelioma, é possível notar um crescimento dos casos. Sobre câncer do pulmão, há evidência de que o risco de desenvolvimento do câncer seria baixo nos primeiros 10 anos a partir da exposição ao amianto e alcançaria o seu nível máximo a partir de 30 anos após o contato com omaterial (Mendes, p. 10-13).



De fato, não parecem existir níveis seguros para a utilização do amianto, inclusive o crisotila. Mendes considera superada, portanto, a chamada “hipótese do anfibólio”, ou seja, a conclusão de que apenas o amianto do tipo anfibólio (azul, marrom e outros), espécie do mineral que já está proibida no Brasil, teria consequências danosas à saúde humana. As fibras do crisotila tem potencial para produzir mesotelioma (Mendes, p. 13-16).



(…)



Em 2004, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama),reconheceu que, de acordo com os critérios adotados pela Organização Mundial da Saúde, não há limites seguros para a exposição humana. Naquele ato, também reconheceu que telhas e caixas d'água feitos de crisotila são resíduos perigosos.”



Não prospera, portanto, a alegação de que o asbesto branco ou crisotila seria uma variedade segura de amianto. Tanto é verdade que muitos países, em destaque os pertencentes à União Europeia, baniram a utilização de qualquer tipo de amianto, devido aos perigos manifestos à saúde da população e, especialmente, dos envolvidos nos setores produtivos.

Nesse contexto, a Convenção nº 162 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil e internalizada através do Decreto nº 126/1991, previu a substituição gradativa do amianto por substâncias menos nocivas à saúde.



Vale dizer, o Brasil se comprometeu a adequar sua legislação para, sempre que  possível, substituir o uso do amianto pelo emprego de tecnologias alternativas. E, de

acordo com estudo de Cláudio Viveiros de Carvalho, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, existem materiais substitutivos ao amianto no mercado brasileiro que atendem tanto às especificações tecnológicas quanto às de proteção da saúde humana, tais como aramidas, PVA e fibra de celulose (http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1245/amianto_viveiros.pdf).



Frise-se que a convenção ratificada pelo Brasil tem status infraconstitucional, porém supralegal, de modo que a lei federal deveria ter sido editada em consonância com o compromisso assumido de eliminar gradativamente a utilização do amianto, já que existentes tecnologias alternativas. Nesse sentido, não vislumbro a alegada inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 12.684/2007; pelo contrário, a lei local atende melhor ao preceito constitucional de proteção à saúde, de modo que acompanho o entendimento preliminar manifestado pelo STF na matéria.



Ante o exposto, julgo improcedente o pedido de anulação do auto de imposição de penalidade, bem como revogo a liminar concedida às fls. 479/480, para o  fim de restabelecer a penalidade administrativa de interdição imposta pela vigilância sanitária municipal.



PELO EXPOSTO, DECIDO rejeitar a preliminar de incompetência do Juízo e, no mérito, julgar IMPROCEDENTE a ação anulatória movida por INFIBRA S.A. e SAMA S.A. MINERAÇÕES ASSOCIADAS, esta na condição de assistente litisconsorcial, em face do MUNICÍPIO DE LEME, revogando a liminar concedida às fls. 479/480, para o fim de restabelecer a penalidade administrativa de interdição imposta pela vigilância sanitária municipal.



Custas pela requerente, calculadas sobre o valor da causa, no importe de R$200,00.



Intimem-se as partes e o Ministério Público do Trabalho.



Leme, 22 de agosto de 2011.



LUCIANA MORO LOUREIRO


Juíza Federal do Trabalho